sexta-feira, 16 de abril de 2010

A VERDADE ALÉM DOS FATOS

Como saborear um prato de comida com prazer quando centenas de pessoas não têm sequer uma mesa para sentar em razão de subitamente terem perdido todo o pouco que tinham?
O drama dos moradores de São Gonçalo e da área metropolitana do Rio de Janeiro mostrou ao Brasil muito mais que políticas públicas ineficientes voltadas para o setor de habitação e segurança pública: homens públicos que deveriam estar na cadeia, atrás das grades, em razão de sua falta de responsabilidade e omissão, pois só se preocupam com o voto e em se perpetuar no poder.
Mas a tragédia mostrou também a solidariedade de uma gente há muito esquecida, marginalizada e apontada como culpada de tudo de ruim que acontece em sociedade, a começar pelos policiais e passando pelos menos favorecidos pela sorte ou pelo destino.
Quem não gosta de “pulíçia” (sic) é bandido e governador. No primeiro caso, dispensa esclarecimentos devido ao óbvio, mas quanto ao segundo, ele precisa de um bode expiatório para sua incompetência no trato com a res publica e com a ausência de políticas eficientes, seja esta no policiamento ou em práticas que evitem esses dramas, como a compulsoriedade na remoção de casas em áreas de risco. Mas sabemos que tal ação implicaria em perda de votos, e isso eles não querem. Vide o próprio estado do Rio de Janeiro. Como exemplo, cito Bom Jesus do Itabapoana, município do noroeste fluminense distante 330 quilômetros da capital.
Lá, a Polícia Militar sequer tem viatura para patrulhamento. Na verdade, tem apenas uma, um VW Gol, para cobrir uma área 598, 84 km². Além disso, não existe sequer uma Secretaria de Meio Ambiente e uma prefeita que assumiu o poder mesmo tendo ficado em terceiro lugar nas eleições municipais, mas isso é assunto para outra ocasião.
Quanto à Polícia Civil, possui dois veículos da marca Renault modelo Mégane ano 2010, fora as viaturas descaracterizadas. Nada contra a Polícia Civil, ao contrário, mas isso é no mínimo estranho, pois o patrulhamento ostensivo cabe à Polícia Militar, e o mais coerente seria que ela tivesse prioridade na distribuição de viaturas para poder cumprir o seu papel constitucional, mas não é isso que acontece no estado do Rio de Janeiro.
As últimas tragédias provocadas pelas chuvas no Rio de janeiro trouxeram também à tona uma outra realidade não menos cruel que a dos policiais militares: a dos bombeiros. Homens trabalhando à exaustão porque o número de combatentes é insuficiente e é preciso dar conta da árdua tarefa de salvar vidas ou encontrar corpos e sobreviventes: desempenham sua função por amor à vida e ao próximo. Se uma tragédia como a do Morro do Bumba, em São Gonçalo, tivesse ocorrido em outro lugar e nas mesmas proporções, seria um caos, pois não há número suficiente de bombeiros e equipamentos para atender a população, e isso me foi dito por um oficial de alta patente da corporação. Porém, o mais estúpido, é que o governo do estado do Rio de Janeiro demorou muito para aceitar a ajuda disponibilizada por outros estados e pela própria União, o que se aceito, poderia minimizar os dramas daquelas e de outras pessoas que ainda estão sofrendo.
Mas à parte a incompetência daqueles que teriam por obrigação evitar tais tragédias ou minimizar os danos às vítimas, a começar pelo governador do estado, Sérgio Cabral, a sociedade civil de Bom Jesus do Itabapoana (RJ) e Bom Jesus do Norte (ES), se mobilizaram e deram um bonito exemplo de solidariedade. Homens, mulheres e crianças atenderam ao apelo e participaram ativamente da campanha que foi iniciada para ajudar os vitimados pelas chuvas. E fizeram bonito.
Pelos vários bairros por onde andei, notei que os lugares mais carentes eram onde as pessoas mais participavam. Cheguei a receber um saco de arroz abaixo da metade. Pensei em não aceitar, mas por outro lado, sabia que se fizesse isso deixaria a doadora muito triste, e mesmo com o coração em pedaços e com os olhos marejados, aceitei.
Também foi muito bonita a participação das crianças e adolescentes das escolas que visitei. Todos queriam participar e deram um belo exemplo para os adultos naquilo que se convencionou chamar de “CIDADANIA”, mas pra mim foi muito mais que isso: foi uma verdadeira prova de amor ao próximo.
Finalizando, não poderia deixar de mencionar a importante participação da 2ª Companhia da Polícia Militar do 29º BPM (Itaperuna).
Todos, independentes da patente, participaram muito além daquilo que esperávamos; seja pedindo doações, solicitando transporte ou cedendo espaço para o armazenamento dos donativos. Realmente, quem não gosta de polícia é bandido. Nossa polícia militar está muito acima das críticas que lhes são feitas, assim como a polícia civil, que igualmente é vítima de reiterados desgovernos.
Por último, fica aqui registrado o meu agradecimento a todos que participaram desta campanha em prol da vida. Opto em não mencionar nomes exatamente para não incorrer no erro de deixar alguém de fora. Mas sei que todos preferem que fiquem assim: no anonimato. Mas que o mundo saiba que temos um povo lindo, participativo, e que independente de fé ou ausência dela, são solidários à dor alheia, e isso, é o que vale.

A LUTA CONTINUA.

sábado, 3 de abril de 2010

O SAGRADO E A POLÍTICA

Ainda que nem todas às ideias de Aristóteles me sejam caras, num ponto concordo com aquele eminente filósofo: “o homem é um animal político” que tende a se organizar em cidades e a se realizar como cidadão.
Porém, além dessa característica, o homem é um ser religioso, principalmente se observarmos que a sua estrutura no tempo e no espaço tenha-se dado de forma completamente diferente dos outros animais. É o único com capacidade de modificar o meio em que vive e a matar pelo simples prazer de reafirmar sua superioridade em relação aos demais seres, inclusive sobre ele próprio, o que dentro da lógica aristotélica justifica a sua relação com o sagrado e com a metafísica. Nesse contexto, o universo mágico-religioso está no centro da vida humana, o que nos leva à conclusão de que isso ocorre principalmente pelo medo que o homem tem do desconhecido e do “terror pela morte”, como bem dizia o Barão de Holbach, filósofo contemporâneo de Voltaire.
Por mais românticos que possamos ser em relação à esfera mítica ou à ideia da existência de forças superiores, a verdade é que este sagrado vai muito além da simples manifestação de um desejo de ligação com o todo, isso porque a esfera do sagrado não pode ser dissociada da morte ou, mais ainda, do assassinato, sob pena de perder o seu sentido mais genuíno.
É claro que isto pode soar estranho, sobretudo para os que estão habituados à ideia de uma “religião do amor”, mas a verdade é que o fundamento do sagrado é sangrento e cruel, estando ligado inexoravelmente a uma decisão que o homem teria tomado no início dos tempos e que teria determinado a sua existência como um ser soberano e dominador que se reflete na decisão de “matar para sobreviver”.
Sim, o homem decidiu matar, mas provavelmente não sem intuir o aspecto atroz desta decisão. Afinal, ao tornar-se carnívoro, pelo desenvolvimento de uma tecnologia que permitiu caçar e matar os animais e que logo serviu também à matança da sua própria espécie, o homem triunfou sobre todos os outros seres da natureza. Esse triunfo, nada mais é que o simbolismo do homem sobre os deuses. Eis porque os mitos fundadores das religiões estão sempre associados ao assassinato de uma divindade, onde a própria imolação de Cristo seria igualmente parte deste mesmo mito fundador.
De modo bem direto: o homem mata, mas não sem culpa, e assim ele produz uma moral e uma religião que se assentam no martírio, nos sacrifícios, mas também no sentimento paradoxal de que agimos contra a natureza que nos gerou.
É este sentimento de dívida e culpa que teria dado origem à imolação de seres inocentes, humanos e animais, nos rituais religiosos, maneira pela qual os homens acreditam poder aplacar a ira das divindades e se reconciliar com elas (forma estranha de se penitenciar pela crueldade de matar).
Com isso, não restam dúvidas e fica fácil de compreender do por que das religiões sempre acabarem por funcionar como instrumentos de poder e dominação. Resumindo: a história do homem é a história de uma violação.
No fundo, a “humanização” do homem é também paradoxalmente a sua desumanização. E o pecado original, ainda que não acredite nisso e pelo que me parece, não se deu com a mordida na maçã, mas sim, quando o homem mastigou seu primeiro pedaço de carne, o que faz com que o sagrado seja a política do homem muito além de se organizar em sociedade.

A luta continua.

Marcelo Adriano Nunes de Jesus

sexta-feira, 2 de abril de 2010

UMA CIDADE ÓRFÃ

Há cinco anos e três meses à frente do forum de Bom Jesus do Norte, sul do Espírito Santo, o jovem juiz de direito Mário da Silva Nunes Neto fez história nessa pequena cidade de aproximadamente 10 mil habitantes.
Sua saída anunciada causou tristeza e comoção em muitas pessoas, afinal, a população não estava acostumada a assistir um empenho tão contundente de um magistrado, seja este nas causas sociais seja nos processos em que atuava.
Era comum ver o doutor Mário envolvido em questões de direitos humanos e democráticos. Cito o exemplo do apoio à campanha para ajudar às vítimas das enchentes em Santa Catarina ocorrida em 2008.
Cerca de duas toneladas de alimentos e milhares de peças de roupas foram arrecadas em apenas dois dias de campanha. O forum serviu de depósito e o doutor Mário pagou do próprio bolso o transporte terrestre até Vitória para que de lá as doações fossem embarcadas em aviões da FAB com destino à Santa Catarina. Verbas arrecadadas em multas nos Juizados Especiais Criminais também foram destinadas a instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE, que adquiriu, graças ao seu empenho, um respirador artificial e outros equipamentos; o Lar André Luiz também foi agraciado com suas ações, além de várias outras que ele prefere que fiquem no anonimato.
Por outro lado, engana-se quem considera que com essas atitudes o nobre juiz buscasse a mídia ou o reconhecimento popular, ao contrário. Doutor Mário sempre fora muito reservado. Era avesso às entrevistas. Chegava mesmo a pedir que suas ações fora do âmbito judicial não fossem divulgadas pela mídia local, preferia o anonimato ou que os méritos fossem para os outros que junto com ele estivessem trabalhando em alguma causa social. Emocionou-se quando alunos da APAE lhe fizeram uma justa homenagem.
Era doce, mas endurecia quando a situação assim o exigia. Durante as últimas eleições municipais em Bom Jesus do Norte, a população surpreendeu-se ao ver o jovem juiz fiscalizando in loco as campanhas eleitorais, não permitindo compra de votos, disponibilizando seu telefone celular para denúncias e dando voz de prisão àqueles que se consideravam acima do bem e do mal. Nunca Bom Jesus do Norte assistiu uma cena dessas, um juiz de direito acompanhando fiscalização policial para evitar entrega de cestas básicas e fazendo “ronda” nos bairros para verificar se havia alguma coisa que pudesse comprometer a democracia.
Às vezes, quando se achava que o doutor Mário estava num lugar ele aparecia em outro. Nosso juiz deixou muita gente preocupada, principalmente àqueles acostumados a falcatruas e desdém pela Justiça.
Por ele, foi-nos ensinado que a democracia é o maior bem que uma sociedade pode dispor, e ele, junto com o Ministério Público atuando como representantes do Poder Judiciário local estavam ali para fazer cumprir a lei, independente das partes envolvidas e assegurar a vontade do povo, e não do poder econômico que muitas das vezes trazem resultados catastróficos para uma sociedade.
Em seu gabinete e com os olhos marejados, na quinta-feira, dia 25, doutor Mário anunciou sua despedida. Fez um balanço do período em que aqui esteve afirmando que graças ao empenho de todos a comarca sob sua responsabilidade conseguiu atingir os objetivos estipulados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), denominado Meta 2, e que apenas seis ou sete processos não foram sentenciados por diversas razões, entre as quais, ou as partes não diligenciaram naquilo que lhes competiam ou perícias não foram realizadas no tempo oportuno ou ainda por motivos que não foram possíveis combater.
Doutor Mário deixa Bom Jesus do Norte inaugurando o fórum em novo endereço, o qual sofreu bastante com as enchentes no município em 2009. Centenas de processos foram atingidos pelas águas barrentas trazidas pela enxurrada das chuvas, mas graças ao seu empenho e de todos os funcionários nenhum processo ativo se perdeu, todos foram recuperados.
Talvez o maior legado deixado por esse jovem paladino para Bom Jesus do Norte tenha sido a sua defesa da democracia e dos direitos humanos. Mesmo aqueles que por ele foram sentenciados, afirmaram serem justas as decisões a que foram submetidos.
Lembro-me de um júri que assistia e que o doutor Mário mandou a escolta policial retirar as algemas do acusado, pois até aquele momento ele era réu, e não condenado – disse o juiz -. Logo após a decisão do júri e a leitura da sentença, aí sim, o acusado uma vez condenado, fora determinado aos policiais à colocação das algemas.
Hoje, dia 30 de março de 2010, no exato instante em que escrevo, doutor Mário está presidindo seu último julgamento em nossa comarca: há um júri popular em andamento para decidir o destino de uma pessoa acusada de homicídio. Não tive coragem de ficar lá e assistir, talvez pelo fato de estar emocionado com a sua saída. É oportuno esclarecer que tanto eu quanto minha companheira e familiares nunca tivemos ou temos qualquer ação tramitando em Bom Jesus do Norte ou solicitamos qualquer favor ao ilustre juiz, mesmo porque dependendo do pedido saberíamos antecipadamente qual seria resposta. Nossa manifestação é um reconhecimento à sua atuação global, e não particular e que representa o sentimento de vários cidadãos e cidadãs quem vivem em Bom Jesus do Norte ou da Justiça daqui precisaram.
E por essas mesmas pessoas foi-me dado uma enorme responsabilidade: escrever, em breves linhas, sobre a trajetória e atuação do doutor Mário da Silva Nunes Neto. Sei que não estou à altura de escrever sobre o senhor, doutor Mário, por várias razões, sendo a principal delas a competência. Mas por outro lado, não poderia fugir à responsabilidade que cresceu na medida em que fui procurado por aquelas pessoas da nossa sociedade, aquelas mesmas, silenciosas, mas atentas e que não se omitem quando provocadas a se manifestar, e em nome delas que reuni coragem e me atrevi a escrever.
Que o senhor seja tão feliz na justa medida em que o senhor fez as pessoas felizes. Talvez o senhor nem saiba, mas um simples “bom dia” que tenha partido do senhor teve o poder de mudar a vida de muita gente aqui.
O céu de Bom Jesus do Norte hoje vai estar mais triste; perdeu uma estrela, a mais bela. Mas sabemos que ela estará iluminando outros céus, afinal, “se tu amas uma flor, é doce, de noite olhar o céu e todas as estrelas estarão floridas”, e aqui, sempre que a democracia prevalecer, saberemos que foi graças ao senhor que aprendemos a acreditar na Justiça, e esteja certo, nesse momento olharemos o céu e faremos um brinde e um agradecimento ao senhor. Muito obrigado!

A luta continua...Um pouco mais triste, mas continua.

Bom Jesus do Norte (ES), 30 de março de 2010