DIÁLOGOS, MAS NÃO É O DE PLATÃO.
Dizem as más línguas que o Brasil é o país campeão em termos de preconceitos e desconhecimento histórico, o que de certa forma se confirma ao verificar as últimas declarações do nosso presidente que colocou a culpa da atual crise mundial nos “homens brancos e de olhos azuis” além de outras opiniões tresloucadas que se entreouvem por aí.
Guardadas as devidas proporções, dias desses numa dessas intermináveis filas bancárias em que eu estava apenas para buscar uma informação, não pude deixar de ouvir um diálogo entre duas senhoras acerca de um grupo de ciganos que há dias havia chegado à cidade.
Eis um trecho da conversa.
- “Maria”, você viu que coisa horrível?! Como se já não bastassem às várias pessoas estranhas que têm aparecido por aqui, agora apareceu um povo meio esquisito, com dentes de ouro e umas roupas meio estranhas, acho que devem ser ciganos.
- Ah, sim, eu vi, e você está certa, são ciganos. Inclusive ontem pela manhã a polícia foi chamada para “revistar” um grupo que estava aqui na esquina, ao lado da farmácia lendo as mãos de algumas mulheres. Vê se pode, tanto lugar para essa gente se “achegar” e eles resolveram vir pra cá! A polícia está certa, tem que revistar, prender e de preferência mandá-los baixar noutra freguesia, pois ouvi dizer que são todos ladrões.
- É verdade, mas eles estavam roubando alguém?! - perguntou a primeira -.
- Não, mas por via das dúvidas é melhor prevenir do que remediar.
- Você tem razão, que coisa!.
Confesso que esse diálogo mexeu um pouco comigo, sobretudo ao notar que as mulheres estavam bem vestidas e demonstravam poucos erros de português em suas falas, o que denota uma certa instrução. Mas, independente do grau de escolarização e de como as pessoas estão vestidas, considero um absurdo em pleno século XXI - com tantas informações disponíveis e acessíveis - as pessoas ainda nutrirem preconceitos ainda mais em relação à cultura de um povo. Será que elas desconheciam o fato do Brasil ter tido dois Presidentes que foram ciganos, Washington Luis e Juscelino Kubitschek? Pensei.
O fato, é que no dia seguinte a esse diálogo, fui ao meu “laboratório”, reuni as turmas do 8° e 9° anos do ensino fundamental e disse-lhes que naquela semana iríamos fazer um trabalho de campo; um estudo sobre a cultura cigana e que tinha por finalidade melhor esclarecê-los no sentido de se evitarem injustiças com o desconhecido, afinal, não é todo dia que se tem uma oportunidade como essa.
Ante a empolgação dos adolescentes com o tema e após insistentes pedidos para fazermos logo o trabalho, resolvi atende-los e fazer a visita ao acampamento naquele mesmo dia.
Dividi os grupos, passei algumas instruções finais e seguimos nossos “destinos” rumo ao desconhecido.
Dirigi-me ao primeiro cigano que avistei na entrada da Usina Santa Isabel. Era um homem de meia idade, porém muito educado e solícito.
- Bom dia, senhor, disse-lhe. Estou com um grupo de alunos do Colégio Estadual Alcinda Lopes Pereira Pinto e gostaria de saber com quem devo falar para pedir uma autorização para fazer uma entrevista com os moradores do local.
- Ah, sim, bom dia! O senhor pode falar com o “seu” Moacir, ele está sentado bem ali, disse-me apontando o local.
Agradeci, chamei os alunos e fomos juntos ao encontro do “seu” Moacir.
- Bom dia, senhor, disse-lhe.
- Bom dia, retrucou. A que devo a honra de tão bela visita – perguntou -?
Após me apresentar e explicar-lhe a que tínhamos ido, com uma amabilidade e paciência incríveis, o senhor Moacir respondeu a todas as perguntas que lhe foram dirigidas bem como autorizou nossa visita as várias barracas existentes no local, – desde que também fossem autorizadas pelos moradores –, o que foi permitido por todos, além do fato de poder fotografar o que considerássemos importante para o nosso trabalho e entrevistar quem quiséssemos.
Confesso que foi um grande aprendizado, tanto para mim quanto para os alunos, que a partir daquele instante passaram a enxergar os ciganos com outros olhos; com os olhos da verdade, e não mais com os olhos da superstição e do “ouvi dizer”. Descobrimos muitas coisas interessantes, entre elas, a que qualquer um pode se tornar um cigano, assim como qualquer cigano pode deixar de sê-lo, para isso bastando querer. Admito que desconhecia esse e vários outros detalhes que nos foram passados.
Outra coisa que também chamou muito a nossa atenção foi a limpeza e o cuidado das mulheres no trato com os utensílios de cozinha. Nunca houvera visto panelas tão brilhantes em minha vida, nem quando novas.
Um outro fato não menos importante e que também é do desconhecimento de muitos, diz respeito a religião: se denominam católicos, mesmo mantendo algumas das suas tradições, como a crença na reencarnação, no destino etc. Mas soube também, que eles se tornam adeptos da religião predominante do lugar aonde estão, isso no caso de ciganos que vivem na Europa, Ásia e África, mas são sempre monoteístas Fiquei tentando imaginar vários ciganos dentro de uma Igreja Católica num domingo de missa. taí uma cena que adoraria presenciar, ainda que em Bom Jesus tivéssemos tido um padre que fora cigano, conforme o caso hoje do monsenhor Paulo Pedro, o qual levava muitos ciganos para o interior da Igreja.
Entretanto, para assistir a uma missa, eles têm que se “disfarçar”. Passando esmaltes brancos nos dentes para esconderem os de ouro e também usando roupas convencionais para não serem notados. Fazem isso provavelmente para evitar constrangimentos e preconceitos. Deve ser horrível ter que se passar por outra pessoa para poder ao menos rezar em paz!
Entretanto, sabe-se que a Igreja prega a fraternidade entre os povos e é totalmente contra qualquer tipo de discriminação. O fato, é que essa atitude de alguns ciganos se deve a algum caso isolado ocorrido numa dentre milhares de Igrejas.
Numa das minhas perguntas ao chefe do grupo, fui bem direto ao assunto, perguntei como eles faziam para sobreviver. Se existiam falcatruas ou golpes contra os incautos dentre outras coisas do gênero.
Foi quando ele me respondeu:
- Meu filho, as pessoas têm o livre arbítrio, a gente educa. Eu tenho pouco estudo, mas aprendi na escola da vida, que é a mais completa de todas, - disse o senhor Moacir do que silenciosamente concordei. E continuou -, que tudo o que aqui se faz, aqui se paga. Deus não dorme, são esses valores que passamos de geração a geração para os mais novos, mas é possível que haja ciganos que pratiquem o mal, assim como existem maus médicos, maus policiais, maus professores, maus pais, etc. e com os ciganos não é diferente, existem grupos rivais sim, mas que raramente se enfrentam, preferem se evitar.
- Respondendo a sua pergunta de forma mais direta, - continuou - aqui não prejudicamos ninguém, mas vou te falar uma outra coisa, – e apontou para o meu tênis -. Se eu te ofereço trinta reais pelo seu sapato, você me vende, e lá na frente eu vendo por sessenta, prejudiquei alguém? Perguntou.
- Não, absolutamente, - respondi -.
- Pois então, sobrevivemos de trocas, compra e venda. O mundo é dos mais sabidos, disse sorrindo, mas sem nenhuma maldade na sua fala ou no seu olhar.
- E quanto às mulheres - perguntei - o que fazem?
- As mulheres são responsáveis pelo sustento da família através das adivinhações. Cuidam da casa e dos filhos, mas os homens também contribuem através do comércio.
- Ah, sim, disse-lhe concordando com a cabeça. Então são as mulheres as grandes responsáveis pelo sustento da família! Interessante, pensei.
Por fim, ao contrário do que muitos pensam, os ciganos são um povo muito pacífico, nunca se envolveram em polêmicas criadas por eles próprios. As polêmicas são criadas pelos outros que consideram sua cultura superior a deles, como se isso fosse possível. É um dos poucos povos do mundo que nunca se envolveram em nenhum tipo de guerra. Vagam pelo mundo há milhares de anos e não há nenhum registro histórico que faça menção a qualquer tipo de violência que por eles tenham sido praticados. Ao contrário, na história recente da humanidade, foram eles quem sofreram os maiores horrores durante o Holocausto, mas muito pouco é dito sobre esse episódio, mesmo nos livros didáticos de História, o que é lamentável. As razões dessa amnésia da História? Assunto talvez para um próximo texto, mas estejam certos, elas existem.
É como dizia Saint Exupéry: “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos”. Noutras palavras, só se respeita àquilo que se conhece, então, que esse texto, mesmo sem o rigor acadêmico, sirva para iluminar a “Carverna de Platão” a qual uma boa parte dos homens vivem..
A luta continua.
Bom Jesus do Norte, 30 de Março de 2009.
Marcelo Adriano Nunes de Jesus.